"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que do inferno não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço."
Ítalo Calvino

terça-feira, 2 de setembro de 2008

A invenção da tradição

Sendo a Grã-Bretanha a pátria da "invenção da tradição", é desnecessário explicar aqui a expressão. Todos sabem, igualmente, como os antropólogos apressaram-se em adaptar tal idéia à nostalgia cultural hoje corrente entre os povos outrora coloniais. Pelo Terceiro e Quarto Mundo afora, as pessoas andam a proclamar o valor de seus costumes tradicionais (tal como elas os concebem). Infelizmente, uma certa atmosfera livresca de inautenticidade paira sobre esse moderno movimento pró-cultural. O rótulo acadêmico "invenção" já sugere artifício, e a literatura antropológica transmite, com demasiada freqüência, a impressão de um passado meio falsificado, improvisado ara fins políticos, que provavelmnte deve mais a forças imperialistas que a fontes indígenas. A título de antídoto possível, chamo a atenção para um caso notável de invenção da tradição, cuja respeitabilidade nenhum acadêmico do Ocidente será tentado a negar. Pois deu-se que, nos séculos XV e XVI, um punhado de intelectuais e artistas nativos europeusreuniu-se e pôs-se a inventar suas tradições, e a si mesmos, tentando revitalizar o saber de uma antiga cultura que consideravam ter sido obra de seus ancestrais, mas que não compreendiam plenamente, pois essa cultura estava perdida há muitos séculos, e suas línguas (latim e grego) andavam corrompidas ou esquecidas. Muitos séculos antes, igualmente, esses europeus tinham-se convertido ao Cristianismo; mas isso não os impedia agora de clamar pela restauração de sua herança pagã: voltariam a praticar as virtudes clássicas, chegariam mesmo a invocar os deuses pagãos. Seja lá como for (e como foi), nessas circunstâncias - as de uma enorme distância a separar esses intelectuais aculturados de um passado efetivamente irrecuperável -, nessas circunstâncias a nostalgia já não era o que costumava ser. Os textos e monumentos que esses intelectuais construíram eram, o mais das vezes, meros simulacros servis de modelos clássicos. Criaram assim uma tradição consciente de cânones fixos e essencializados; escreveram história no estilo de Lívio, poesia em um latim amaneirado, tragédia ao modo de Sêneca e comédia conforme Terêncio; decoraram igrejas cristãs com fachadas de templos clássicos e seguiram, de modo geral, os preceitos da arquitetura romana estabelecidos por Vitrúvio - sem se darem conta de que esses preceitos eram gregos. Tudo isso veio a ser chamado, na história européia, de Renascimento, pois deu à luz a "civilização moderna". O que mais se pode dizer disso, senão que algumas pessoas sempre tiram a sorte grande histórica? Quando são os europeus que inventam suas tradições - com os turcos à suas portas - trata-se de um renascimento cultural genuíno, o início de um futuro de progresso. Quando outros povos o fazem, é um signo de decadência cultural, uma recuperação factícia, que não pode produzir senão simulacros de um passado morto. Por outro lado, a lição histórica poderia ser a de que nem tudo está perdido (Marshal Sahlins. Esperando Foucault Ainda)

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